Acho pertinente a reflexão do texto abaixo neste momento de vestibulares, avaliações e provas.
Boa leitura!
A democracia da decoreba
As leis da natureza podem
ser cruéis. O preço do sucesso aqui pode ser o fracasso ali. Em meados dos anos
70, peritos da Fundação Ford ajudaram a reformular o vestibular do Quênia.
Tornaram as provas mais inteligentes e criativas, buscando testar aquilo que
realmente correspondia a uma boa educação. Obviamente, reforçaram perguntas de
raciocínio e reduziram o número daquelas que apenas testavam a memória ou
refletiam aspectos culturais. É isso que cabe fazer, pois estudamos para a
prova. Se a prova é boa, estudamos coisas boas. Mas eles esperavam também que
as provas ficassem mais justas, dando melhores oportunidades àqueles de origem
mais modesta. Surpresa! Comparadas com as anteriores, as novas provas
distanciavam ainda mais os ricos dos pobres. Pouco tempo depois, orientei a
tese de mestrado de uma moça que havia estudado com Piaget. Ela estava
indignada com a injustiça trazida
pelos testes de inteligência aplicados pela Secretaria de Educação, pois
exigiam conhecimentos factuais e normas culturais, não apenas raciocínio e
capacidade mental. Em contraste, os protocolos inspirados nas teorias de Piaget
eram livres desses ruídos. Tomou então uma amostra de alunos e aplicou os dois
procedimentos. Outra surpresa! Comparados ao tradicional da secretaria,
os protocolos de Piaget refletiam ainda mais a origem social dos alunos.
Nessa época, eu dirigia um projeto internacional de pesquisas
(Programa Eciel) que incluía sete países latino-americanos. Tratávamos de
aplicar testes de rendimento escolar (antepassados do Programa Internacional de
Avaliação de Alunos — Pisa) e descobrir que fatores se associavam a bons
resultados. Além das análises convencionais, decidimos separar
as perguntas de memória daquelas que demandavam manifestações mais
elaboradas de raciocínio. Tabulando, veio o mesmo resultado: os pobres obtinham
escores relativamente próximos dos alcançados pelos ricos nas perguntas de
memória, mas a distância aumentava com relação
àquelas que mediam aplicação, raciocínio e análise. O Exame Nacional do Ensino
Médio (Enem) não privilegia a memória. Portanto, se substituir um vestibular
muito tradicional, dará uma vantagem extra aos alunos que frequentaram as
melhores escolas. No panorama brasileiro, são predominantemente alunos de
origem social mais elevada A ideia de que seria uma prova que promoveria a
igualdade social não passa de uma quimera. Eis o dilema. Se queremos uma
educação melhor para o país, temos de sinalizar nos testes a direção do esforço
esperado. Se a prova pedir raciocínio e análise, os alunos vão se esforçar
para dominar essas competências. Se pedir para decorar, é isso que vão fazer.
Portanto, o futuro da educação não pode abrir mão de provas que focalizem tais
conhecimentos mais nobres — e não a memorização.
É verdade, para decorar fórmulas,
reis da França, tabelas periódicas ou guerras púnicas, pobres e ricos estão em
condições parecidas. Basta tempo para estudar e teimosia para guardar isso tudo
na cabeça. Já as competências de ordem superior são muito mais difíceis de ser
ensinadas. Portanto, sofrem muito mais as escolas piores, frequentadas pelos
mais pobres. Em contraste, nas escolas dos alunos de família mais próspera
esses assuntos são privilegiados. Por isso, eles terão maior chance de obter
bons resultados. É a natureza malvada validando a chamada Lei de Mateus:
"A quem tem, mais lhe será dado”. E agora? Se voltassem os vestibulares de
decoreba, os pobres estariam mais bem servidos. Mas isso seria uma forma
perversa de aproximá-los dos ricos, puxando para baixo o ensino de todos, já
que as avaliações guiam o ensino. Não melhoraremos nossa lastimável educação
sem provas que empurrem na direção certa. O que fazer: aproximar pobres e ricos
ou promover conhecimentos de ordem superior? Não há como titubear. Nos testes,
a prioridade tem de estar naqueles que empurrem para cima o ensino. Para
atender aos imperativos de justiça social, o caminho é outro: melhorar a
qualidade da educação pública nos níveis iniciais. Somente assim se pode
reduzir a distância entre classes sociais, ou seja, puxando os pobres para
cima. Aliás, para justificar essa política de qualidade, não seria necessário
falar de vestibular.
Claudio
de Moura Castro
Veja de
28 de Maio de 2012
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